“A UnB era um sonho, eu pensava: ‘poxa, será que um dia eu vou estudar na Universidade de Brasília?’, e quando eu chego encontro os parentes aqui, muita gente do Alto Rio Negro e de outros lugares do Brasil.” A felicidade pelo encontro com povos de diferentes etnias movia Altaci Rubim, 46 anos – primeira indígena a fazer parte do corpo docente da UnB –, quando ainda ingressava no doutorado na instituição, em 2012. É este sentimento pulsante que a Universidade se empenha em cativar, atuando para agregar cada vez mais indígenas ao ambiente acadêmico e para tornar este espaço mais democrático e plural, um ponto de encontro da diversidade.
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Nesta terça-feira (19) celebra-se o Dia de Luta e Resistência dos Povos Indígenas, e a Universidade de Brasília, que comemora 60 anos na mesma semana, aproveita a ocasião para destacar os avanços da presença indígena na instituição, e os desafios que ainda se apresentam nessa trajetória.
Dados da Secretaria de Administração Acadêmica (SAA) mostram que atualmente a Universidade reúne 229 estudantes indígenas, distribuídos em 61 cursos de graduação, com destaque para Medicina, Enfermagem, Engenharia Florestal e Saúde Coletiva.
Outros 77 indígenas já se formaram pela UnB – nesta relação, destacam-se os graduados em Medicina e Nutrição. A Universidade também forma pesquisadores: 68 indígenas já concluíram a pós-graduação na instituição, sendo 50 mestres e 18 doutores, com destaque para a área de concentração em Teoria e Análise Linguística, no Programa de Pós-Graduação em Linguística, que já formou oito mestres e dois doutores.
Atualmente, 33 estudantes indígenas estão na pós-graduação, sendo 20 no doutorado e 13 no mestrado – só o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social reúne cinco doutorandos e três mestrandos. A instituição também conta com docentes indígenas em seu quadro. Conheça as histórias deles.
PIONEIRA – Integrante do povo kokama, do Alto Solimões no Amazonas, Altaci Rubim teve desde cedo sua trajetória marcada pela docência. “Na aldeia, a gente é escolhido para ser professor. A gente não escolhe, a gente é escolhido em assembleia”, explica a professora.
“Eu recebi essa responsabilidade, o peso das lideranças terem me escolhido para ser professora. E desde então, a minha busca foi sempre por formação, para me aprimorar cada vez mais, aprimorar a minha prática pedagógica para que os alunos possam realmente aprender”, conta.
O percurso como docente começou na aldeia de sua avó, em uma comunidade ticuna chamada Vila de Betânia. Depois foi para Manaus, onde deu continuidade aos estudos. Em 2005, concluiu a primeira graduação na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Normal Superior. Posteriormente, formou-se em Pedagogia.
Na capital, também atuou na educação infantil, fez duas especializações e em 2010 concluiu o mestrado em Antropologia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Em 2012, Altaci chegou a Brasília para cursar o doutorado em Linguística. “A UnB é uma instituição que acolhe, fomos muito bem acolhidos. E naquele momento, com os colegas do Xingu, do Pará, do Amazonas, a gente se tornou uma família dentro da Universidade, enfrentando os desafios do mundo acadêmico” conta a docente.
Após a defesa da tese, Altaci retornou a Manaus, onde desempenhou a função de gerente de educação escolar indígena na prefeitura. Em 2018, ela prestou um concurso para o Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas do Instituto de Letras da UnB e, no dia 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher, tomou posse como primeira docente indígena da UnB.
“A diversidade pluriétnica dentro da Universidade só traz mais sensibilidade para os estudantes conhecerem melhor os povos indígenas do Brasil e outros povos a partir da visão do próprio indígena, dos próprios povos tradicionais”, analisa Altaci, que defende a inclusão de cotas para professores indígenas nos concursos, para ampliar a diversidade no corpo docente.
Atualmente, além das atividades de pesquisadora e professora, Altaci atua no GT Mundial para Década das Línguas Indígenas, instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), representando os povos indígenas da América Latina e Caribe.
MILITÂNCIA – O professor da UnB Gersem José dos Santos Luciano, 57 anos, é conhecido como Gersem Baniwa. Seu povo mora no norte do Amazonas, no Alto Rio Negro. Foi lá, na região da fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela que ele nasceu e iniciou a vida escolar.
O docente começou a atuar bem cedo no movimento indígena da região. Segundo ele, foi a vivência proporcionada pela militância que permitiu seu ingresso na Faculdade de Filosofia da Ufam, em 1992. Após a graduação, atuou como secretário Municipal de Educação e gestor de projetos, sempre com foco no desenvolvimento de políticas públicas voltadas à população indígena.
Em 2004, Gersem chegou à UnB para cursar o mestrado em Antropologia Social. O professor lembra como era a cena universitária há quase 20 anos: "Neste período quase não havia indígenas na Universidade de Brasília. Eu era praticamente o único e completamente despercebido, ninguém dava visibilidade a isso, ninguém considerava isso algo excepcional”, relata.
Após a conclusão do mestrado, em 2007 Gersem ingressou no doutorado em Antropologia Social, quando começou a observar mudanças no corpo discente: “No final da década de 2000, aí sim começaram as entradas dos primeiros estudantes indígenas, que agora vejo com muita alegria em um número significativo”, avalia.
Durante o doutorado, ele assumiu como professor da Ufam, em 2009. Em 2022, após um processo de redistribuição, Gersem retornou à UnB, dessa vez como docente do curso de Antropologia. Agora, com um cenário mais diverso do que aquele vivenciado por ele durante o mestrado.
“Tem a Maloca [Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas], que os jovens indígenas têm como ponto de referência e se encontram; tem toda uma luta organizada de coletivos indígenas com grandes conquistas de direitos”, afirma. “É outra Universidade, com outra cara, outro ritmo, outro contexto de debates, de discussões e dos desafios que se apresentam. Eu me sinto muito feliz e ao mesmo tempo desafiado nesse novo contexto, agora como docente”, completa o professor.
Para ele, depois das políticas de acesso e permanência, o desafio é fazer com que a Universidade consiga tirar proveito da diversidade de saberes reunidos: “Os cursos podem aproveitar melhor esse repositório importante de conhecimentos que esses alunos carregam. Porque eles chegam aqui com muito conhecimento de suas culturas e línguas. Eu acho que a Universidade ainda precisa dar espaço para aproveitar melhor esses saberes indígenas nos próprios currículos, nos programas, conteúdos, disciplinas, metodologias e enriquecer seu escopo teórico e metodológico”, avalia o docente.
POLÍTICAS – “A UnB foi uma das pioneiras no ingresso de estudantes indígenas em uma instituição pública federal”, afirma Cláudia Renault, coordenadora da Questão Indígena na Diretoria de Diversidade (DIV). Ela lembra que em 2006 a UnB realizou o primeiro vestibular indígena. As provas eram aplicadas em polos próximos às comunidades, e eram complementadas por entrevistas e análise de documentação.
Os cursos eram ofertados pela Universidade e selecionados pelos estudantes indígenas e por suas lideranças, de acordo com as necessidades das comunidades, pensando na inserção dos futuros graduados em cargos voltados à gestão dos respectivos territórios.
Na época, a iniciativa contava com parceria da Fundação Nacional do Índio (Funai), que custeava o deslocamento dos estudantes e uma bolsa permanência. O convênio sofreu alterações ao longo dos anos, e a Universidade passou a fornecer auxílio moradia para discentes indígenas, auxílio socioeconômico, além da Bolsa Permanência (programa do Ministério da Educação).
O vestibular indígena foi suspenso entre 2015 e 2017, depois, retomado. No rol de políticas voltadas para este público, Cláudia também destaca a criação da Maloca: “A UnB é a primeira universidade a ter uma casa que também é um centro de convivência, criado após a reivindicação dos estudantes indígenas”, afirma a coordenadora.
“Lá temos encontros, seminários, momentos de convivência, de estudos, espaços de defesas de TCC, dissertações e teses, além de ser considerado um território indígena dentro da Universidade”, completa.
Segundo ela, a UnB conta com a representação de mais de 40 povos indígenas, e essa presença é positiva para todos os membros da comunidade universitária: “A presença indígena dentro da UnB é um compromisso desde a sua fundação, quando Darcy Ribeiro propõe uma universidade diversa, para acolher os povos indígenas na sua diversidade e para que possa haver esse diálogo de saberes”.
“As políticas que a UnB proporciona (não somente para os povos indígenas, mas para a diversidade cultural que existe no Brasil), as coloca à frente das demais Universidades”, avalia Altaci. “Com essas políticas abrem-se mais portas para que outras pessoas cheguem e consigam aproveitar essa oportunidade como eu aproveitei”, conclui a professora.
Na mesma linha, Gersem destaca as ações da Universidade nesta área: “A UnB é umas das [instituições] que mais avançou em termos de construção de ações, programas e políticas de acesso e permanência de indígenas. Claro que talvez ainda não seja suficiente, mas considerando as experiências brasileiras de outras universidades, sem dúvida nenhuma [houve avanços]”.
Confira vídeo da Semana dos Acadêmicos Indígenas da UnB: